Como saber se Tiririca está alfabetizado?
Esther Pillar Grossi
Doutora em Psicologia da Inteligência
pela Universidade de Paris
É pelo menos intrigante, para não dizer incompreensível, o que vem acontecendo com um cidadão que foi eleito deputado federal e sobre o qual paira a interrogação se é ou não alfabetizado, condição para exercer tal mandato legislativo.
O que não se pode compreender é que a avaliação para concluir se Tiririca é ou não alfabetizado seja feita por juízes eleitorais.
A quem cabe decidir se alguém é ou não portador de alguma enfermidade?
A quem cabe julgar se uma obra de engenharia está ou não de acordo com as exigências técnicas requeridas?
A quem cabe avaliar se alguém é ou não alfabetizado?
É incrível que para esta avaliação não seja chamado um profissional conhecedor das sutilezas do processo de alfabetização. O juiz que agora afirma que Tiririca é alfabetizado porque apresenta “um mínimo de intelecção do conteúdo de um texto, apesar da dificuldade na escrita”, assim como o que inicialmente concluiu por sua incompetência para ler e escrever, não são profissionais habilitados para emitir tais julgamentos.
Estar alfabetizado exige que qualquer pessoa seja capaz de ler e de escrever um texto com características bem definidas, conhecidas por quem é da área. É imprescindível ler e compreender o conteúdo de um determinado texto, que cuidadosamente é preparado para essa avaliação. E é indispensável ser capaz de escrever também, de próprio punho, um texto, não um ditado proposto por outra pessoa. O texto escrito só será satisfatório para considerar-se alguém alfabetizado se uma pessoa medianamente instruída conseguir compreender o que o escrevente escreveu. Alfabetizado só o é quem consegue compreender idéias de outro postas no papel e quem consegue pôr no papel ideias suas, com princípio, meio e fim, pois isto é produzir um texto.
Este é o critério definido pela UNESCO para caracterizar a competência que permite considerar alguém alfabetizado.
Para avaliar esta competência há exigências e estratégias didáticas próprias, há modos estudados e testados para fazê-lo, e há profissionais preparados para tanto.
Confesso que não só tive vontade de me apresentar para avaliar Tiririca, como, mais do que isto, desejei ter disponibilidade para me prontificar a alfabetizá-lo, caso não o seja. Para tal, menos de três meses são necessários, com metodologia científica muito nova, que se apóia no pós-construtivismo. De acordo com esta metodologia ele deveria ser inserido em uma turma de no mínimo 12 alunos, porque aprendizagem escolar é um fenômeno social e só bem se realiza no interior de um grupo de colegas que persigam juntos os mesmos conhecimentos. A alfabetização acontece numa turma de alunos orientada para que percorra um processo muitíssimo interessante, o qual compreende hipóteses construídas a partir do contato com atos e materiais de escrita, isto é convivendo com pessoas que lêem e escrevem, assim como dispondo de livros, revistas, jornais, cartas, listas, cartazes, rótulos, etc... É fácil dar-se conta que estes contatos não são corriqueiros para quem é oriundo de ambiente onde estão os 50 milhões de adultos analfabetos com os quais ainda convivemos no Brasil. Cabe à escola, nesses casos, compensar a ausência desses contatos nas famílias, o que concretamente é possível.
A avaliação da competência na leitura e na escrita deve levar em conta uma síntese muito particular de três habilidades diferentes e complementares, que são a de associar sons a letras, a de ler e a de escrever. Aprender a ler e a escrever é semelhante a compreender e/ou falar uma língua estrangeira. Pode-se compreender sem falar ou até pode-se conseguir falá-la sem compreender quando outros falam, porque um e outro são processos diferentes, que não são simultâneos, nem paralelos. Somente quando se logra esta síntese de ler e de escrever é que se está alfabetizado, e para sempre. A perenidade desta alfabetização se deve ao fato de que nosso sistema nervoso registra tais sínteses, que são esquemas de pensamento. Nosso cérebro não acolhe conceitos isolados, ele só acolhe e registra campos conceituais, isto é um conjunto de elementos que se fecham num sistema de relações. Aquilo que não é registrado no organismo não tem como permanecer nele com estabilidade, isto é, não é verdadeiramente aprendido.
Portanto, avaliar se alguém está ou não alfabetizado é tarefa de profissional da área, que conhece os meandros do complexo processo pelo qual se passa para dominar a magia da escrita.
Felizmente, é isto que estão fazendo centenas de professores, no Rio Grande do Sul, dentro do projeto “Alfabetização de alunos com seis anos”, e milhares no Brasil, dentro do “Programa de Correção de Fluxo Escolar”, do MEC, ambos realizados pelo Geempa. Neles, os alunos são avaliados rigorosamente, com instrumento cientificamente qualificado e, felizmente, com excelentes resultados. Nesta excelência está o contingente de nosso estado que, neste ano de 2010, conseguiu alfabetizar todos os seus alunos, os quais comemorarão tal conquista em uma festa de premiação, dia 18 de dezembro, no Teatro São Pedro, em Porto Alegre.
Portanto, não se pode saber se Tiririca é ou não alfabetizado, a não ser que ele seja avaliado por profissional que conheça por dentro como se dá o processo de alfabetização e que saiba como se evidenciam os critérios estabelecidos pela UNESCO para considerá-lo alfabetizado.