quarta-feira, 30 de junho de 2010

2ª Aula Entrevista Pós-Alfabetização

Texto produzido a partir da história “O dono da bola” (do livro Marcelo, marmelo, martelo e outras histórias, de Ruth Rocha)

O dono da bola

Caloca é um amigo legal, mas nem sempre foi assim, não. Antigamente ele era o menino mais enjoado de toda a rua. E não se chamava Caloca, o nome dele era Carlos Alberto.

Caloca morava na casa mais bonita da rua e seus brinquedos os mais legais. Ele só não tinha amigos, porque brigava com todo mundo e não deixava ninguém brincar com os seus brinquedos.

Mas futebol ele tinha que jogar com a turma, porque futebol não se pode jogar sozinho.
O time de futebol estava cheio de amigos. O que não tinha era a bola de futebol. Só uma bola de meia, mas não é a mesma coisa.

Bola boa é de couro, como a do Caloca. Mas toda vez que ele jogava acontecia a mesma coisa. Era só o juiz apitar falta do Caloca, que ele logo gritava dizendo que não jogaria mais, pegava sua bola e voltava para casa.

E, assim, Carlos Alberto acabava com tudo que era jogo. A coisa começou a complicar mesmo, quando o time resolveu entrar no campeonato do bairro. O treino precisava ser com bola de verdade para ninguém acha estranho na hora do jogo. Só que os treinos nunca chegavam ao fim.
Catapimba, que era o secretário do clube, resolveu fazer uma reunião para procurar uma solução para o caso do Carlos Alberto. Vermelhinho de raiva, Caloca disse que não jogaria mais naquele time e saiu pisando duro, com a bola debaixo do braço.

Todas as vezes que Caloca fazia isso, ele acabava voltando e dando um jeito de entrar no time de novo. Mas, daquela vez, o time estava decidido. Ele até veio ver os treinos, mas ninguém ligou. Ninguém disse nada.
Carlos Alberto tentou jogar com o time da rua de cima, mas lá não conseguiu se adaptar. A primeira vez que ele quis carregar a bola no melhor do jogo se deu muito mal... O time inteiro correu atrás dele e ele só não apanhou porque se escondeu na casa do Batata.

Então Carlos Alberto resolveu jogar bola sozinho. Batia bola com a parede. Talvez a parede fosse o único amigo que ele tinha. Mas não deve ter achado muito divertido jogar com a parede. Depois de três dias Carlos Alberto não aguentou mais e apareceu no campinho, querendo voltar para o time.

Como a condição para seu retorno, não bastaria emprestar a bola. Caloca precisava dar bola para o time de uma vez. Mas ele não concordou, pensando que eles estavam lhe achando bobo.
E Carlos Alberto continuou sozinho. Mas já não estava gostando de estar sempre sozinho.
No domingo convidou Xereta para brincar com seus brinquedos, que mesmo espantado aceitou o convite. Na segunda e na terça chamou mais meninos para brincar.

Na quarta apareceu no treino, com a bola debaixo do braço, mas dessa vez foi diferente. O time todo ficou admirado com a decisão do Caloca em dar a bola para o time, de verdade!
Os treinos recomeçaram animadíssimos. O final do campeonato estava chegando e precisavam recuperar o tempo perdido.

Carlos Alberto estava outro, foi uma grande transformação, jogava direitinho e não criava caso com ninguém.

A mudança teve um significado muito importante para o time. O Estrela-d’Alva Futebol Clube conseguiu ganhar o campeonato e todo mundo se abraçou.

Carlos Alberto agora é chamado de Caloca e tem muitos amigos.
Palavras:

(1) animadíssimos
(2) estrela
(3) daquela vez
(4) sozinho
(5) pensando
(6) treino
(7) transformação
(8) adaptar
(9) Admirado
(10) significado

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Dinomir na Copa do Mundo

Por ocasião desta Copa do Mundo,muitos professores estão elaborando atividades didáticas sobre os jogos na África do Sul. Complementamos sua criatividade com a pequena história trabalhada na aula de Denise Paiva Gravi de Dom Pedrito/RS com o Dinomir, personagem clássico de alunos do GEEMPA.
Obs: História e glossário disponível na página: Dinomir vai a copa.

Estudos Geempianos II 2010

Dia 13 de junho na sede do GEEMPA, em Porto Alegre, vinte e nove professores se reuniram para aprofundar conhecimentos sobre ensino e aprendizagem. O primeiro tema abordado foram as relações entre arte-cultura e educação. E o segundo objeto de estudo foram fragmentos do livro de Jacques Ranciére – O mestre ignorante. Os fragmentos seguem abaixo:

(1) O problema é revelar uma inteligência a ela mesma. Qualquer coisa serve para fazê-lo. É Telêmaco. Pode ser uma oração ou uma canção que a criança ou o ignorante saiba de cor. Há sempre alguma coisa que o ignorante sabe e que pode servir de termo de comparação, ao qual é possível relacionar uma coisa nova a ser conhecida.

(2) Quem ensina sem emancipar, embrutece. E quem emancipa não tem que se preocupar com aquilo que o emancipado deve aprender. Ele aprenderá o que quiser, nada, talvez. Ele saberá que pode aprender porque a mesma inteligência está em ação em todas as produções humanas, que um homem sempre pode compreender a palavra de um outro homem. O impressor de Jacotot tinha um filho que era débil mental. Todos se preocupavam por não poder fazer nada a respeito. Jacotot lhe ensinou o hebraico e a criança tornou-se um excelente litógrafo. O hebreu, é evidente, jamais lhe serviu para nada – a não ser para saber o que as inteligências mais bem dotadas e mais instruídas ainda ignoravam, e não se tratava do hebraico.

(3) Não se trata de um questão de método, no sentido de formas particulares de aprendizagem, trata-se de uma questão propriamente filosófica: saber se o ato mesmo de receber a palavra do mestre – a palavra do outro – é um testemunho de igualdade ou de desigualdade. É uma questão política: saber se o sistema de ensino tem por pressuposto uma desigualdade a ser “reduzida” ou uma igualdade a ser verificada. É por isto que o discurso de Jacotot é o mais atual possível.

(4) Ele preveniu: a distância que a Escola e a sociedade pedagogizada pretendem reduzir é aquela de que vivem e que não cessam de reproduzir. Quem estabelece a igualdade como objetivo a ser atingido, a partir da situação de desigualdade, de fato a posterga até o infinito. A igualdade jamais vem após, como resultado a ser atingido. Ela deve sempre ser colocada antes. A própria desigualdade social já a supõe: aquele que obedece a uma ordem deve, primeiramente, compreender a ordem dada e, em seguida, compreender que deve obedecer-lhe. Deve, portanto, ser já igual a seu mestre, para submeter-se a ele. Não há ignorante que não saiba uma infinidade de coisas, e é sobre este saber, sobre esta capacidade em ato que todo ensino deve se fundar. Instruir pode, portanto, significar duas coisas absolutamente opostas: confirmar uma incapacidade pelo próprio ato que pretende reduzi-la ou, inversamente, forçar uma capacidade que se ignora ou se denega a se reconhecer e a desenvolver todas as consequências desse reconhecimento. O primeiro ato chama-se embrutecimento e o segundo, emancipação. No alvorecer da marcha triunfal do progresso para a instrução do povo, Jacotot fez ouvir esta declaração estarrecedora: esse progresso e essa instrução são a eternização da desigualdade. Os amigos da igualdade não têm que instruir o povo, para aproximá-lo da igualdade, eles têm que emancipar as inteligências, têm que obrigar a quem quer que seja a verificar a igualdade de inteligências.

(5) Bastaria dizer à inteligência que dormita em cada um: Age quod agis, continua a fazer o que fazes, “aprende o fato, imita-o, conhece-te a ti mesmo, é a marcha da natureza”. Repete metodicamente o método do acaso que te deu a medida de teu poder. A mesma inteligência está em ação em todos os atos do espírito humano. Este é, no entanto, o salto mais difícil. Quando necessário, todos praticavam esse método, mas ninguém está pronto a reconhecê-lo, ninguém quer enfrentar a revolução intelectual que ele implica. O círculo social, a ordem das coisas, proíbe que ele seja reconhecido pelo que é: o verdadeiro método pelo qual cada um aprende e pelo qual cada um descobre a medida de sua capacidade. É preciso ousar reconhecê-lo e prosseguir a verificação aberta de seu poder. Sem o que, o método da impotência, o Velho, durará tanto quanto a ordem das coisas.

(6) Mestre é aquele que encerra uma inteligência em um círculo arbitrário do qual não poderá sair se não se tornar útil a si mesma. Para emancipar um ignorante é preciso e suficiente que sejamos, nós mesmos, emancipados; isto é, conscientes do verdadeiro poder do espírito humano. O ignorante aprenderá sozinho o que o mestre ignora, se o mestre acredita que ele o pode, e o obriga a atualizar sua capacidade: círculo da potência homólogo a esse círculo da impotência que ligava o aluno ao explicador do velho método (que denominaremos, a partir daqui, simplesmente de Velho). Mas a relação de forças é bem particular. O círculo da impotência está sempre dado, ele é a própria marcha do mundo social, que se dissimula na evidente diferença entre a ignorância e a ciência. O círculo da potência, quanto a ele, só vigora em virtude de sua publicidade. Mas não pode aparecer senão como uma tautologia, ou um absurdo. Como poderá o mestre sábio aceitar que é capaz de ensinar tão bem aquilo que ignora quanto o que sabe? Ele só poderá tomar essa argumentação da potência intelectual como uma desvalorização de sua ciência. E o ignorante, por sua vez, não se acredita capaz de aprender por si mesmo – menos, ainda, de instruir um outro ignorante. Os excluídos do mundo da inteligência subscrevem, eles próprios, o veredicto de sua exclusão. Em suma, o círculo da emancipação deve ser começado.

(7) Há embrutecimento quando uma inteligência é subordinada a outra inteligência. O homem – e a criança, em particular – pode ter necessidade de um mestre, quando sua vontade não é suficientemente forte para colocá-la e mantê-la em seu caminho. Mas, a sujeição é puramente de vontade a vontade. Ela se torna embrutecedora quando liga uma inteligência a uma outra inteligência. No ato de ensinar e de aprender há duas vontades e duas inteligências. Chamar-se-á embrutecimento à sua coincidência. Na situação experimental criada por Jacotot, o aluno estava ligado a uma vontade, a de Jacotot, e a uma inteligência, a do livro, inteiramente distintas. Chamar-se-á emancipação à diferença conhecida e mantida entre as duas relações, o ato de uma inteligência que não obedece senão a ela mesma, ainda que a vontade obedeça a uma outra vontade.

(8) As duas estão, sobretudo, presas no círculo da sociedade pedagogizada. Elas atribuem à Escola o poder fantasmático de realizar a igualdade social ou, ao menos, de reduzir a “fratura social”. Mas este fantasma repousa, ele próprio,sobre uma visão da sociedade em que a desigualdade é assimilada à situação das crianças com retardo. As sociedades do tempo de Jacotot confessavam a desigualdade e a divisão de classes. A instrução era, para elas, um meio de instituir algumas mediações entre o alto e o baixo: um meio de conceder aos pobres a possibilidade de melhorar individualmente sua condição e de dar a todos o sentimento de pertencer, cada um em seu lugar, a uma mesma comunidade. Nossas sociedades estão muito longe desta franqueza. Elas se representam como sociedades homogêneas, em que o ritmo vivo e comum da multiplicação das mercadorias e das trocas anulou as velhas divisões de classes e fez com que todos participassem das mesmas fruições e liberdades. Não mais proletários, apenas recém-chegados que ainda não entraram no ritmo da modernidade, ou atrasados que, ao contrário, não souberam se adaptar às acelerações desse ritmo. A sociedade se representa, assim, como uma vasta escola que tem seus selvagens a civilizar e seus alunos em dificuldade a recuperar. Nestas condições, a instrução escolar é cada vez mais encarregada da tarefa fantasmática de superar a distância entre a igualdade de condições proclamada e a desigualdade existente, cada vez mais instada a reduzir as desigualdades tidas como residuais. Mas a tarefa última desse sobre-investimento pedagógico é, finalmente, legitimar a visão oligárquica de uma sociedade-escola em que o governo não é mais do que a autoridade dos melhores da turma. A estes “melhores da turma” que nos governam é oferecida então, mais uma vez, a antiga alternativa: uns lhe pedem que se adapte, através de uma boa pedagogia comunicativa, às inteligências modestas e aos problemas cotidianos dos menos dotados que somos; outros lhe requerem, ao contrário, administrar, a partir da distância indispensável a qualquer boa progressão da classe, os interesses da comunidade.

(9) A igualdade, ensinava Jacotot, não é nem formal nem real. Ela não consiste nem no ensino uniforme de crianças da república nem na disponibilidade dos produtos de baixo preço nas estantes de supermercados. A igualdade é fundamental e ausente, ela é atual e intempestiva, sempre dependendo da iniciativa de indivíduos e grupos que, contra o curso natural das coisas, assumem o risco de verificá-la, de inventar as formas, individuais ou coletivas, de sua verificação. Essa lição, ela também, é mais do que nunca atual.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Alfabeto enfurecido

O alfabeto só pode estar enfurecido no mundo, mas muito especialmente no Brasil. Quantas pessoas não podem usá-lo? Para quantos o alfabeto não diz nada? Eles são cegos para a escrita. Eles não podem entrar nos jogos com as letras do alfabeto? E, no Brasil, adultos são 50 milhões. E crianças, são 3 milhões que em cada final de ano letivo não conseguem a maravilha de juntar as letras. O alfabeto tem que enfurecer-se.


Oportuníssimo é o título da exposição que está na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. Ele se casa bem com a de Helio Oiticica, que está no Espaço Cultural do Banco Itaú em São Paulo, cujo título é “O museu é o mundo”. Que se complementa com a afirmação também de Oiticica de que “a arte é a experiência cotidiana”. A arte é, ao lado da ciência, uma tentativa de nos entender e de entender o mundo. Porém, a arte, em relação à ciência, leva uma vantagem – a de que toca nossos afetos, nos afeta emocionalmente, ao mesmo tempo em que explica.


Uma exposição de dois artistas muito próximos a nós, Mira Schendel, quase brasileira, e Leon Ferrari, vizinho de porta, porque é argentino, cheia de letras e de escritos, com este título: “O Alfabeto Enfurecido” se associa magnificamente aos 40 anos do Geempa, ONG que tem no centro de suas ações o intento de acalmar o alfabeto, ensinando a ler e a escrever a muitos. Quem se alfabetiza doma o alfabeto, isto é, transforma um animal selvagem domesticando-o. Quem se alfabetiza acalma literalmente o alfabeto enfurecido. É assim que os analfabetos percebem as letras – como um monstro enfurecido que as ameaça, porque eles não as entendem, mas, principalmente, porque, por sua falta, eles estão por fora de um veículo de comunicação estupendo que é a escrita.


Associa-se à exposição de Ferrari e Mira o filme de Chabrol, no qual uma moça francesa mata a família para a qual trabalha, quando na família se descobre que ela não sabe ler. Não saber ler é uma experiência dolorosa e profunda de solidão, porque condena à não participação na riqueza das conversas que só a letra escrita proporciona. Neste momento, é muito gratificante coordenar vários esforços, de governantes nacionais, estaduais e municipais para abrir as portas da escrita a mais de 200.000 alunos. Comemorando seus 40 anos o Geempa é convocado pelo MEC, pela Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul e ainda por vários municípios para capacitar alfabetizadores que realmente ensinem a ler e a escrever em um período letivo. Pois é importantíssimo alfabetizar durante um período letivo, no contexto de uma experiência coletiva fazendo parte de uma turma de alunos. O alfabeto enfurecido ainda se enfurece mais para alunos que não se alfabetizam em um período letivo. É um terrível engano pedagógico, sob o pretexto de que a aprendizagem seria um processo contínuo, pensar que a alfabetização pode ocorrer nos dois primeiros anos do Ensino Fundamental. Cristalinamente não, por sólidas razões científicas, tanto teóricas como práticas. A alfabetização ocorre em um período letivo, por razões muito concretas. Escolha-se, então, em que idade se pretende alfabetizar – aos 6 ou aos 7 anos – mas organize-se a alfabetização para um período letivo, pois:

os processos de aprendizagem não são individuais

os processos de aprendizagem não são contínuos

o sofrimento de não aprender não é sentido somente quando o aluno é oficialmente reprovado. Ele o vive agudamente durante todo o processo.

Tudo isto adquire ainda mais sentido quando se consegue alfabetizar em quatro meses, como estão fazendo milhares de professores no Brasil, no Programa de Correção de Fluxo Escolar na Alfabetização, baseando-se no suporte teórico pós-construtivista.


Concreta e felizmente eles estão apaziguando o Alfabeto Enfurecido.


Esther Pillar Grossi
Doutora pela Universidade de Paris