quarta-feira, 16 de junho de 2010

Estudos Geempianos II 2010

Dia 13 de junho na sede do GEEMPA, em Porto Alegre, vinte e nove professores se reuniram para aprofundar conhecimentos sobre ensino e aprendizagem. O primeiro tema abordado foram as relações entre arte-cultura e educação. E o segundo objeto de estudo foram fragmentos do livro de Jacques Ranciére – O mestre ignorante. Os fragmentos seguem abaixo:

(1) O problema é revelar uma inteligência a ela mesma. Qualquer coisa serve para fazê-lo. É Telêmaco. Pode ser uma oração ou uma canção que a criança ou o ignorante saiba de cor. Há sempre alguma coisa que o ignorante sabe e que pode servir de termo de comparação, ao qual é possível relacionar uma coisa nova a ser conhecida.

(2) Quem ensina sem emancipar, embrutece. E quem emancipa não tem que se preocupar com aquilo que o emancipado deve aprender. Ele aprenderá o que quiser, nada, talvez. Ele saberá que pode aprender porque a mesma inteligência está em ação em todas as produções humanas, que um homem sempre pode compreender a palavra de um outro homem. O impressor de Jacotot tinha um filho que era débil mental. Todos se preocupavam por não poder fazer nada a respeito. Jacotot lhe ensinou o hebraico e a criança tornou-se um excelente litógrafo. O hebreu, é evidente, jamais lhe serviu para nada – a não ser para saber o que as inteligências mais bem dotadas e mais instruídas ainda ignoravam, e não se tratava do hebraico.

(3) Não se trata de um questão de método, no sentido de formas particulares de aprendizagem, trata-se de uma questão propriamente filosófica: saber se o ato mesmo de receber a palavra do mestre – a palavra do outro – é um testemunho de igualdade ou de desigualdade. É uma questão política: saber se o sistema de ensino tem por pressuposto uma desigualdade a ser “reduzida” ou uma igualdade a ser verificada. É por isto que o discurso de Jacotot é o mais atual possível.

(4) Ele preveniu: a distância que a Escola e a sociedade pedagogizada pretendem reduzir é aquela de que vivem e que não cessam de reproduzir. Quem estabelece a igualdade como objetivo a ser atingido, a partir da situação de desigualdade, de fato a posterga até o infinito. A igualdade jamais vem após, como resultado a ser atingido. Ela deve sempre ser colocada antes. A própria desigualdade social já a supõe: aquele que obedece a uma ordem deve, primeiramente, compreender a ordem dada e, em seguida, compreender que deve obedecer-lhe. Deve, portanto, ser já igual a seu mestre, para submeter-se a ele. Não há ignorante que não saiba uma infinidade de coisas, e é sobre este saber, sobre esta capacidade em ato que todo ensino deve se fundar. Instruir pode, portanto, significar duas coisas absolutamente opostas: confirmar uma incapacidade pelo próprio ato que pretende reduzi-la ou, inversamente, forçar uma capacidade que se ignora ou se denega a se reconhecer e a desenvolver todas as consequências desse reconhecimento. O primeiro ato chama-se embrutecimento e o segundo, emancipação. No alvorecer da marcha triunfal do progresso para a instrução do povo, Jacotot fez ouvir esta declaração estarrecedora: esse progresso e essa instrução são a eternização da desigualdade. Os amigos da igualdade não têm que instruir o povo, para aproximá-lo da igualdade, eles têm que emancipar as inteligências, têm que obrigar a quem quer que seja a verificar a igualdade de inteligências.

(5) Bastaria dizer à inteligência que dormita em cada um: Age quod agis, continua a fazer o que fazes, “aprende o fato, imita-o, conhece-te a ti mesmo, é a marcha da natureza”. Repete metodicamente o método do acaso que te deu a medida de teu poder. A mesma inteligência está em ação em todos os atos do espírito humano. Este é, no entanto, o salto mais difícil. Quando necessário, todos praticavam esse método, mas ninguém está pronto a reconhecê-lo, ninguém quer enfrentar a revolução intelectual que ele implica. O círculo social, a ordem das coisas, proíbe que ele seja reconhecido pelo que é: o verdadeiro método pelo qual cada um aprende e pelo qual cada um descobre a medida de sua capacidade. É preciso ousar reconhecê-lo e prosseguir a verificação aberta de seu poder. Sem o que, o método da impotência, o Velho, durará tanto quanto a ordem das coisas.

(6) Mestre é aquele que encerra uma inteligência em um círculo arbitrário do qual não poderá sair se não se tornar útil a si mesma. Para emancipar um ignorante é preciso e suficiente que sejamos, nós mesmos, emancipados; isto é, conscientes do verdadeiro poder do espírito humano. O ignorante aprenderá sozinho o que o mestre ignora, se o mestre acredita que ele o pode, e o obriga a atualizar sua capacidade: círculo da potência homólogo a esse círculo da impotência que ligava o aluno ao explicador do velho método (que denominaremos, a partir daqui, simplesmente de Velho). Mas a relação de forças é bem particular. O círculo da impotência está sempre dado, ele é a própria marcha do mundo social, que se dissimula na evidente diferença entre a ignorância e a ciência. O círculo da potência, quanto a ele, só vigora em virtude de sua publicidade. Mas não pode aparecer senão como uma tautologia, ou um absurdo. Como poderá o mestre sábio aceitar que é capaz de ensinar tão bem aquilo que ignora quanto o que sabe? Ele só poderá tomar essa argumentação da potência intelectual como uma desvalorização de sua ciência. E o ignorante, por sua vez, não se acredita capaz de aprender por si mesmo – menos, ainda, de instruir um outro ignorante. Os excluídos do mundo da inteligência subscrevem, eles próprios, o veredicto de sua exclusão. Em suma, o círculo da emancipação deve ser começado.

(7) Há embrutecimento quando uma inteligência é subordinada a outra inteligência. O homem – e a criança, em particular – pode ter necessidade de um mestre, quando sua vontade não é suficientemente forte para colocá-la e mantê-la em seu caminho. Mas, a sujeição é puramente de vontade a vontade. Ela se torna embrutecedora quando liga uma inteligência a uma outra inteligência. No ato de ensinar e de aprender há duas vontades e duas inteligências. Chamar-se-á embrutecimento à sua coincidência. Na situação experimental criada por Jacotot, o aluno estava ligado a uma vontade, a de Jacotot, e a uma inteligência, a do livro, inteiramente distintas. Chamar-se-á emancipação à diferença conhecida e mantida entre as duas relações, o ato de uma inteligência que não obedece senão a ela mesma, ainda que a vontade obedeça a uma outra vontade.

(8) As duas estão, sobretudo, presas no círculo da sociedade pedagogizada. Elas atribuem à Escola o poder fantasmático de realizar a igualdade social ou, ao menos, de reduzir a “fratura social”. Mas este fantasma repousa, ele próprio,sobre uma visão da sociedade em que a desigualdade é assimilada à situação das crianças com retardo. As sociedades do tempo de Jacotot confessavam a desigualdade e a divisão de classes. A instrução era, para elas, um meio de instituir algumas mediações entre o alto e o baixo: um meio de conceder aos pobres a possibilidade de melhorar individualmente sua condição e de dar a todos o sentimento de pertencer, cada um em seu lugar, a uma mesma comunidade. Nossas sociedades estão muito longe desta franqueza. Elas se representam como sociedades homogêneas, em que o ritmo vivo e comum da multiplicação das mercadorias e das trocas anulou as velhas divisões de classes e fez com que todos participassem das mesmas fruições e liberdades. Não mais proletários, apenas recém-chegados que ainda não entraram no ritmo da modernidade, ou atrasados que, ao contrário, não souberam se adaptar às acelerações desse ritmo. A sociedade se representa, assim, como uma vasta escola que tem seus selvagens a civilizar e seus alunos em dificuldade a recuperar. Nestas condições, a instrução escolar é cada vez mais encarregada da tarefa fantasmática de superar a distância entre a igualdade de condições proclamada e a desigualdade existente, cada vez mais instada a reduzir as desigualdades tidas como residuais. Mas a tarefa última desse sobre-investimento pedagógico é, finalmente, legitimar a visão oligárquica de uma sociedade-escola em que o governo não é mais do que a autoridade dos melhores da turma. A estes “melhores da turma” que nos governam é oferecida então, mais uma vez, a antiga alternativa: uns lhe pedem que se adapte, através de uma boa pedagogia comunicativa, às inteligências modestas e aos problemas cotidianos dos menos dotados que somos; outros lhe requerem, ao contrário, administrar, a partir da distância indispensável a qualquer boa progressão da classe, os interesses da comunidade.

(9) A igualdade, ensinava Jacotot, não é nem formal nem real. Ela não consiste nem no ensino uniforme de crianças da república nem na disponibilidade dos produtos de baixo preço nas estantes de supermercados. A igualdade é fundamental e ausente, ela é atual e intempestiva, sempre dependendo da iniciativa de indivíduos e grupos que, contra o curso natural das coisas, assumem o risco de verificá-la, de inventar as formas, individuais ou coletivas, de sua verificação. Essa lição, ela também, é mais do que nunca atual.

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