quinta-feira, 10 de junho de 2010

Alfabeto enfurecido

O alfabeto só pode estar enfurecido no mundo, mas muito especialmente no Brasil. Quantas pessoas não podem usá-lo? Para quantos o alfabeto não diz nada? Eles são cegos para a escrita. Eles não podem entrar nos jogos com as letras do alfabeto? E, no Brasil, adultos são 50 milhões. E crianças, são 3 milhões que em cada final de ano letivo não conseguem a maravilha de juntar as letras. O alfabeto tem que enfurecer-se.


Oportuníssimo é o título da exposição que está na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. Ele se casa bem com a de Helio Oiticica, que está no Espaço Cultural do Banco Itaú em São Paulo, cujo título é “O museu é o mundo”. Que se complementa com a afirmação também de Oiticica de que “a arte é a experiência cotidiana”. A arte é, ao lado da ciência, uma tentativa de nos entender e de entender o mundo. Porém, a arte, em relação à ciência, leva uma vantagem – a de que toca nossos afetos, nos afeta emocionalmente, ao mesmo tempo em que explica.


Uma exposição de dois artistas muito próximos a nós, Mira Schendel, quase brasileira, e Leon Ferrari, vizinho de porta, porque é argentino, cheia de letras e de escritos, com este título: “O Alfabeto Enfurecido” se associa magnificamente aos 40 anos do Geempa, ONG que tem no centro de suas ações o intento de acalmar o alfabeto, ensinando a ler e a escrever a muitos. Quem se alfabetiza doma o alfabeto, isto é, transforma um animal selvagem domesticando-o. Quem se alfabetiza acalma literalmente o alfabeto enfurecido. É assim que os analfabetos percebem as letras – como um monstro enfurecido que as ameaça, porque eles não as entendem, mas, principalmente, porque, por sua falta, eles estão por fora de um veículo de comunicação estupendo que é a escrita.


Associa-se à exposição de Ferrari e Mira o filme de Chabrol, no qual uma moça francesa mata a família para a qual trabalha, quando na família se descobre que ela não sabe ler. Não saber ler é uma experiência dolorosa e profunda de solidão, porque condena à não participação na riqueza das conversas que só a letra escrita proporciona. Neste momento, é muito gratificante coordenar vários esforços, de governantes nacionais, estaduais e municipais para abrir as portas da escrita a mais de 200.000 alunos. Comemorando seus 40 anos o Geempa é convocado pelo MEC, pela Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul e ainda por vários municípios para capacitar alfabetizadores que realmente ensinem a ler e a escrever em um período letivo. Pois é importantíssimo alfabetizar durante um período letivo, no contexto de uma experiência coletiva fazendo parte de uma turma de alunos. O alfabeto enfurecido ainda se enfurece mais para alunos que não se alfabetizam em um período letivo. É um terrível engano pedagógico, sob o pretexto de que a aprendizagem seria um processo contínuo, pensar que a alfabetização pode ocorrer nos dois primeiros anos do Ensino Fundamental. Cristalinamente não, por sólidas razões científicas, tanto teóricas como práticas. A alfabetização ocorre em um período letivo, por razões muito concretas. Escolha-se, então, em que idade se pretende alfabetizar – aos 6 ou aos 7 anos – mas organize-se a alfabetização para um período letivo, pois:

os processos de aprendizagem não são individuais

os processos de aprendizagem não são contínuos

o sofrimento de não aprender não é sentido somente quando o aluno é oficialmente reprovado. Ele o vive agudamente durante todo o processo.

Tudo isto adquire ainda mais sentido quando se consegue alfabetizar em quatro meses, como estão fazendo milhares de professores no Brasil, no Programa de Correção de Fluxo Escolar na Alfabetização, baseando-se no suporte teórico pós-construtivista.


Concreta e felizmente eles estão apaziguando o Alfabeto Enfurecido.


Esther Pillar Grossi
Doutora pela Universidade de Paris

Um comentário:

  1. OLÁ,
    QUERO AGRADECER E SABER SE HÁ INDICAÇÃO DE OUTROS TEXTOS PARA A AVALIAÇÃO NA PÓS ALFABETIZAÇÃO.
    BERENICE

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